Foram mais de 50 anos vivendo preso, calado, na cela perversa da homosexualidade, sofrendo que nem sovaco de aleijado. Mas agora chegou meu momento de sair desta jaula, liberar as algemas dos pruridos comportamentais e me sentir livre, liberto como uma libélula no florecer da primavera.
Nasci numa família onde a viadagem sequer era comentada, quanto mais admitida. Ouvia meu papai falar, com aquele seu olhar de águia intimidador, que se um dia desconfiasse que um filho ou um neto seu tivesse um certo trejeito afeminado (viado pra ele era chamado ora de "Fresco", ora de "Pederasta"), o infeliz tomaria um sonoro "crock" no quengo que passaria uma semana cuspindo cabelo e levaria um bufete tão da bobônica que o "corpo ficaria imóvel e a cabeça iria prestar queixa na delegacia". Minha irmã ficava fora de qualquer suspeita pois naquela época, sapatão era apenas um número acima de 43. A prática do lesbianismo era mais escondida do que umbigo de freira.
Não sabia ele que dentro daquele seu primogênito machão tão desejado e festejado, já começava a "cuminchar" com força e irreversivelmente, o miserável e impertinente gem cocó. A primeira vez que vi minha irmã de sutiã quase morri de inveja. Pensava: "porque ela e não eu estou dentro daquela peça tão feminina"? Quantas vezes na ausência dela, de frente a sua penteadeira, vesti um "Demillus" 36, rosa bebê, meia-taça, com duas bolas de ping-pong no lugar dos mamilos que eu tanto sonhava possuí-los.
O tempo foi passando, a testosterona brigando com a progesterona e os sinais externos da minha masculinidade infelizmente começavam a aflorar. Os primeiros fios de barba eram raspados todo dia com o "Gillette Platinum Plus" do papai. O meu velho, macho brabo "formado na escola onde Lampião foi reprovado por frouxura", todo mês inspecionava meu gogó pra ver se o "nó" estava crescendo. Eu torcendo para que aquele sinal inconfundível de macho demorasse o máximo possível a aparecer mas por outro lado ficava temeroso da reação dele, papai.
Um belo dia ele sentiu a protuberância surgindo e comemorou, efusivamente, divulgando pra toda família. "Viva, este macho filho meu, promete. Tudo indica que vai puxar a meu irmão e logo, logo vai reinar nos cabarés da Manoel Pereira, de Campina Grande, e da Maciel Pinheiro, da capital. A mulherada não vai resistir ao seu excesso de virilidade". Não sabia ele que enquanto meus irmãos liam "Gisele, a espiã nua que abalou Paris", eu me escondia no banheiro para me deliciar com as foto-novelas de amor publicadas nas revistas "Sétimo Céu", "Capricho" e "Contigo".
No colégio Marista onde estudei sofri bullying de todas as formas. Tomei muitos catiripapos e contra-vapor. Era chamado de "Morde fronha", "Dá ré no kibe", "Bambi", "Agasalhador de croquete", "Dorme com vovó" e outros apelidos maldosos que tatuaram, definitivamente, a minha personalidade. Só era chamado para jogar "academia" e "patacho" e pular corda.
O carnaval era o período que eu mais ansiava e adorava e o que mais me sentia reprimido. Eu observava aquelas fantasias glamurosas, o brilho dos paetês e das lantejoulas, os pierrôs esfuziantes, as colombinas deslumbradas, e ficava extasiado me vendo rebolando e brilhando naquele vulcão de alegria e prazer. Quando ouvia os acordes de "Máscara negra", "Vassourinhas", os frevos de Capiba e de Claudionor Germano, os cabelos da nuca eriçavam e o orifício proctológico piscava que só o obturador de uma Roleyflex. Era mais gostoso do que "mijar peidando" como diz o matuto nordestino. Os carnavalescos Clóvis Bornay e Evandro Castro Lima eram meus ídolos e eu não deixava de assistir na televisão (em preto e branco, na casa de "Lolola") os inesquecíveis bailes do Municipal do Rio e o Gala Gay.
Nas décadas de 80 e 90 brinquei muitos carnavais na pracinha da Lagoa do Pau, em Coruripe, nas gostosas companhias dos héteros Alfredão, Bob Maia, Rui Bolivar, Murilão, Guilherme "Cabeleira", "Fredão", Enéas, Ronaldo e vários outros amigos que frequentavam aquele recanto de nome tão sugestivo!!!
Na primeira oportunidade e a pretexto de estudar teatro, balé, maquiagem, costureiro ou mesmo corte de cabelo, saí da minha cidade natal e fui para o Rio de Janeiro atrás, principalmente, da minha liberdade. Morei na Galeria Alaska, em Copacabana, e me senti em casa. Conheci muita gente que pensava e tinha as mesmas carências e problemas de quem viveu numa cidade pequena e patrulhada. Mas mesmo dispondo desta liberdade plena, não consegui me livrar dos grilhões pesados da repressão sofrida na infância e adolescência. Mesmo com esta "camisola de força" invisível e permanente, foi a melhor fase da minha vida. Graças a Deus meu papai nunca soube das preferências homoafetivas do seu "varão boneca". Ele morreu muito cedo.
Mas a idade foi chegando e com ela a solidão, as limitações, a diabetes e o ostracismo. Sempre fui muito discreto e quase ninguém percebeu meu lado mulher que tanto reprimi. Agora não faz mais sentido esconder dos amigos este meu passado aviadado. Resolvi "sair do armário" de forma escancarada e definitiva. Estou me sentido mais leve e aliviado em contar aqui um pouco das minhas alegrias, angústias e frustrações. Vivi no Rio, Sergipe e agora estou aposentado em Alagoas onde pretendo curti o tempo que ainda me resta. Espero que todos entendam, me apoiem e continuem dedicando o mesmo carinho que nunca me faltou.
Meus caros leitores, o depoimento que vocês leram acima me foi dado recentemente pelo cronista social, cidadão de Arapiraca e meu conterrâneo, Diva Albuquerque (que diga-se de passagem, não tem nenhum parentesco comigo).
É muita fuleragem.
16/09/16